terça-feira, 23 de agosto de 2011

O Estuda da Dor.

A dor dentro da dor.

Não sei porque, com tanta intensidade, meu corpo está inerte, minha pupila dilatando, o coração que dispara e o cérebro tornando-se célebre. Queimo os meus neurônios com a minha capacidade de pensar, penso mais ainda mais e sou capaz de matar, mesmo que ilusoriamente, um gigante só com o fechar de minhas mãos e, e, mesmo inerte, e,fleumático, e, mesmo inerte, sem conseguir falar, sou indiferente ao cansaço, sou de aço, não tenho dor... Daqui quinze a vinte minutos tudo muda: aquela dor que não sentia, sinto agora, a dor dentro da dor. O resto da energia que me restava, gasto-a no pleonasmo da busca por outra inalação, de tragar fumaça e sentir no corpo o cloridrato de coca, o sódio, a amônia: Deus salve o meu cachimbo. Eu sou o rei, de mim mesmo, o rei, as pessoas não me entendem, mas sou o rei. Tornei o monarca de mim mesmo, porém, às vezes, preciso de alguma ajuda externa para controlar meu ímpeto, uma moeda, uma nota, um furto, meu angelical ímpeto e é minha a dor dentro da dor da nova dor.
Ela estava lá, inerente a mim e a peguei, pedra pequena diluída num cachimbo artesanal, mais cinzas de cigarro, mais raiva dessa vida distorcida e sem sentido, mais tudo é uma bosta para se viver, assim, viver dessa forma tão sem graça e à minha frente o inalar da fé, do ser que quer ir, finalmente ir, sem dor na dor, para o encontro do fantástico e ilusório mundo dos seres melhores... Depois do novo trago não conseguirei pensar o que pensei agora, até que a minha capacidade de inteligência será ínfima, tão ínfima quanto a minha vida que, conjunta e paralelamente, fina.
Estou cansado, prostrado, acantonado, sem conseguir me levantar e ninguém para me oferecer quinze minutos de arritmia. A sociedade morreu para mim antes mesmo de eu morrer para ela.


sábado, 20 de agosto de 2011

O Estudo da Dor.

Pai e filho.

Desde o nascimento só me deu dor de cabeça. Fui marido de sua mãe grávida de outro. Como foi difícil carregar a pecha, mas aceitei por amor. Inventei um espírito santo e criei uma estória sagrada em torno dele. Maria podia ser lapidada como prostituta, era a lei. Então tomei a frente da coisa e envolvi o deus da moda. Além do que a casa era dela, da família dela... era o dote.
(- Pai, porque me abandonaste?)
Não tivemos direito a hospedagem digna, a casa que era boa, nada. Acabamos emborcados numa manjedoura. Sem contar a insanidade do infanticida Herodes. Nascido, lá se fomos rumo ao Egito, eu, Maria e um bebê chorando de fome e sem circuncisão, a pé.
(-Pai como doem as minhas feridas. E você não está aqui... porque não te ouvi?)
Voltei. O povo foi se acostumando e passei a ser o pai legítimo daquele bastardinho e até gostava da ideia de ser pai daquele varão, à minha semelhança, não me largava, eu o amava. Certa vez, já adolescente, sumiu de nós. Bastante tempo depois o encontramos junto aos ditos “sábios”. Ali ficou, menino, meu menino, entorpecido por ideias que me deixavam louco. E foi ele com aquelas ideias estranhas e eu não tinha mais idade, saúde ou condições de fugir novamente das sandices dos descendentes de Herodes, que me cobravam por mais madeiras lavradas para confeccionar cruz. Maria até que tentou recuperá-lo: "Teu pai e eu, aflitos, estamos à tua procura", mas nada. Até que não tive outra alternativa, se não abandoná-lo. Hoje estou moribundo, sei que vou morrer logo, e ele se quer sabe de mim, andou saindo como uma tal de Madalena, também me abandonou.

- Pai, porque me abandonaste?

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O Estudo da Dor.

Mísseis Cirúrgicos

Dor? Dor não senti.
O primeiro espocar levou uns. Atingiu o concreto imperfurável e o perfurou causando escombros e uma poeira fina. Enfim, veio o silêncio bélico e ao fundo o ruído de sirena, ouvir, ouvir só ouvia o ruído, ao fundo, pois todos surdos tornam-se, mesmo que peremptórios, ou apenas surdinhos, diria, ao som silente dos choros.
Mamãe ali, quase em sorriso, rezando Alá, com o corpo desfigurado e em silêncio.
Papai ali, na posição de Meca, rezando Alá, segurando o mano novo no peito, apertando-o, quebrando-o, e uma viga caída sobre o seu pescoço, e o mano asfixiado, ambos em silêncio.
Na família reinava o desespero, os gritos que via não os ouvia... era uma história muito curta a ser contada. Dor? Dor não. Talvez a realização ao definhamento. Uma triste satisfação.
Minha irmã a me olhar e a gritar, sem som.
Minha tia, irmã de meu pai, chorando. Feliz, eu era o centro das atenções. Eu e meu corpo combalido. Minhas mamas desprotegidas (Alá não gosta), minha roupa em farrapos e minha perna, em fratura exposta, provocava choros, meu antebraço direito retirado do corpo e sangrando lá, cá a hemorragia formigava fria.
Dor? Não senti dor.
Até que o segundo espocar veio, certeiro como o anterior, de um míssil cirúrgico, depois um absoluto silêncio. Dor? Eu sorri...

O Estudo da Dor.

Breve Relato de Um Recém Morrido

Ela consegue encontrar em mim o único minúsculo espaço de mim descoberto de cobertor para me dar um beijo.

Depois me carrega de lá e cá, de cá e lá, de lá e lá e de cá e cá em busca de um cantinho aconchegante para me depositar, apesar de que prefiro aquela aguinha morna de onde acabei de sair.

Não sou especilaista em cheiros, porém os cheiros que estou cheirando agora são agradáveis e são desagradáveis e estão cada vez mais perto de mim.

Ela me lançou de uma altura duas vezes maior que o meu tamanho de trinta e seis centímetros e meio, e caí caindo de costas para sentir um sentimento que chorei.

Chorei mais e parei, depois parei e chorei mais, depois... nada. Olhava o cheiro ao meu redor e via, com meus olhos que não sabiam ver, o barulho bom de brum, brum, de brum, cada vez maior, BRUUUMMM.

Chorei um barulho na barriga, totalmente protegida pelo cueiro apertado, cobertor, e chorei inércia na caixa de papelão, e parei de chorar para ouvir o bruuummm, o brrruuumm gostosinho a levantar o meu enorme berço fedido, depois rolei, eu, a caixa, o cueiro, o cobertor, rolei até uma coisa que fechava.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Samuel (1ª e 2ª partes).

- Samuca, traga os garrafões!
Eram dois. Um garrafão enfeitado de cordoalha, passamanarias e pintado em desenhos de conchinhas. As mulheres da vila modificam objetos simples, coisas cruas, se ocupam no trabalho artesanal. Garrafão cheio de água e a boca protegida por um tucho de papelão. No outro garrafão vinho, quase cheio e fechado com rolha de cortiça. Um alforje, chamado de aió, produzido da pele da onça que certa vez apareceu morta, carregada pelo rio, havia marcas de violência no animal e a incógnita de quem a matou. Poderia ter sido o Zé do Cachimbo, ermitão que vive numa casa de pau a pique no meio da mata, bom homem, quase um bruxo, talvez um bruxo que a fim de se proteger pudesse ter acertado a onça quando essa bebia água na encosta do rio. Talvez alguém, que por medo maior que o da onça, houvesse cometido aquele crime. Talvez os caçadores da capital que, adentrados na mata para caçadas, descobrissem a onça, mas não havia marcas de tiros e se a matassem levariam o corpo do animal como troféu. A onça surgiu morta na língua do rio e a sua pele fora aproveitada para o fabrico do alforje, o aió, que, por si só, já era naturalmente bonito, nem necessitou das hábeis mãos das mulheres artesãs, e o aió não se separava do velho Nico. As mulheres da vila até queriam ornamentar aquela sacola do velho: “Deixa eu mexer no aió, Seu Nico!”, mas o velho Nico relutou, queria ao natural, queria a pele da onça tal como fora resgatada do rio, e pronto, somente as costuras, os bolsos e até fedia um pouco. De um lado do alforje fechado a zíper os documentos que se consistem em papéis anotados a mão, numa caligrafia quase indecifrável, garrancho e erros de ortografia, mas que Nico julga necessitar para as negociações na viagem à Ilhabela e o seu registro de nascimento: ‘Falo pra tu, Samuca, precisa de documento!’ Do outro lado do alforje, também fechado a zíper, o seu canivete feito a mão, sobra de um facão velho quebrado nas empreitadas pela mata, um alicate, um pequeno martelo e pregos de vários tamanhos: ‘Falo pra tu, Samuca, quando não se sabe, tu precisa da ferramenta.’ E no meio do alforje o bolsão aberto para colocar os copos plásticos, dois, ambos desenhados com florzinhas e peixinhos, azuis, amarelos, brancos, que iriam ser usados durante a viagem. Manjubas fritas numa lata de banha e outras cruas em saco cru de estopa; as fritas eram para o consumo da tripulação, Nico e o menino Samuel, e as cruas eram para presentear as aves, quase sempre gaivotas e guarapirás, companheiras nas viagens. O calor promete ser potente. Ainda de madrugada precipita no horizonte os traços das ilhas, também o verde enegrecido da mata começa a se tornar realmente verde, desaparecendo, paulatinamente, o negrume. Penumbra dos corpos, o do velho Nico e o do menino Samuel, vão e vem, silentes no labor do carregamento das coisas ao barco ancorado no rio de onde uma marina fora incorporada espontaneamente com o excesso de vem e vai dos barcos e seus pescadores, que assorearam as areias para o rio poder dar fundo. Dali a pouco, antes de urgir ainda mais o tempo, irão zarpar rumo à Ilhabela. Rio mórbido, pouca corrente, significando, então, pouca profundidade e para completar o mar calmo e pequeno, manso de ondas e marés, certamente irá dificultar a saída do barco da marina. Mas alguns pontos do rio são mais profundos e quem o conhece bem, com um pouco de esforço e habilidade, pode tirar um barco e entregá-lo ao mar, mar que singra barcos e homens. Samuca demarcou com varas de bambus os pontos mais profundos do rio para evitar encalhe: uma vara aqui, outra ali desenham o caminho a ser percorrido, no mar bóias esféricas feitas de isopor tinham iguais funções. ‘Samuca, vê se as varas e as bóias dão barco, vê, Samuca.’

O barco carregado com pencas de bananas, razão da viagem e produto principal do comércio na ilha, está pesado. Enquanto colonos nas praias mais ao norte insistem no plantio de mandioca, Seu Nico se arrisca nas bananas. Se não houver profundidade no rio, deve descarregar as bananas para recarregá-las somente no mar, o que impede a empreitada, pois tomaria tanto tempo. Samuel olha, olha, olha, e paquera as águas e calcula tempo e profundidade para levar o barco ao mar, e não emite som, não faz bruscos movimentos: a profundidade de uma braça aqui, meia braça ali, três pés não dá, mas quando subir maré dá meia braça e assim dá e o tempo era o quase “já, já”: ‘Medisse o vulto para por o barco, Samuca?’ Cautelosamente sim, engenhosamente sim, era o “já, já”, porque depois, dali a pouco, toda a água que faltasse, com o tempo querendo passar mais rápido, lentamente mais rápido, o tempo calmo, certamente não dá para ir, o barco pode encalhar e se pegar a calda do motor, seria um desastre.

Carregado com as pencas de bananas e sacos de cambucis, ainda há um pequeno espaço de tempo para o ócio antes de zarpar e fazer-se ao mar. O menino confere no alforje o tabaco posto por último, mais as palhas de milho ressecadas e os fósforos, tudo junto aos documentos: os copos sim, os documentos sim, as ferramentas sim, a latinha secreta com doce de abóbora presenteada por dona Mariazinha sim, sim, sim, tudo bem no alforje, tudo sim. O motor arriado na polpa que somente será acionado quando tiver distante para não ter riscos de colidir e para evitar o barulho no vilarejo que ainda dorme. Enquanto o velho Nico se concentra numa pseudoprece, Samuel confere as presilhas de vergalhões, os remos que inicialmente ele mesmo os usará. Remos e barco de cedro, seis meses e um pouco mais de trabalho que o velho precisou para o fabrico, depois envernizado, depois conferido parte por parte, coisas de Nico. O luminar no corpo do barco, de que quando se está contra a lua vê o reflexo, lucila o transporte feito pelas mãos do velho Nico e, de aproveitamento, também os remos, tudo meticulosamente produzido para não haver erros; erros em embarcação podem significar naufrágio, então sem erros, cálculos nativos, calmaria caiçara, experiências hereditárias, fórmulas sensuais para se evitar erro: ‘Soubesse que estais no barco que eu mesmo fiz, Samuca? Lembrasse como foi difícil?’ Uma tábua presa de proa à polpa, outra do outro lado, bombordo e estibordo, acento e leito aos viajores para controlar bem o peso quando em alto mar, apesar do que viajariam pelas costas.

Quatro horas da manhã, tudo é silêncio. Os ruídos e vozes que sibilam, compõem o silêncio. Nem os pequenos insetos produzem sons naquela hora do dia, nem os roncos dos grilos, nem o martelar dos sapos. O menino sobe ao convés e se assenta na ponta da proa, logo o velho lança a âncora para dentro do barco e precipita a fazê-lo navegar pelas águas demarcadas do rio. Em seguida Samuel vai ao alcance dos remos, efetivamente irá começar o controle. No primeiro montão de areias o barco ameaça encalhar, mas uma força abrupta do velho e a ajuda do remo de Samuel o desviam do montão, fazendo o barco ir; depois outros montões conhecidos e desviados, o bíceps endurecido do velho e o manejo de alavancas de Samuel evitam acidentes até a catraia se adentrar no mar. O barco intacto chega, enfim, até uma profundidade maior e, num salto, o velho Nico entra no convés e se descansa na bancada, enquanto Samuel rema de um lado, depois do outro, de um lado, doutro, ato rotineiro, e se descansa na polpa para usufruir um pouco mais do tempo sagrado para o ócio. ‘Samuca, enche o copo de vinho. Enfrentar o oceano tem que ter a cabeça de Deus bêbedo, ou só sendo moleque como tu é.’
Pronto. O barco ruma próximo às costeiras e longe das pedras que somente são perceptíveis aos que conhecem o lugar, desvia daqui, desvia dali, ali tem uma pedra gigantesca que não se pode ver, mas tem, tá lá, e outras que somente a perspicácia dos pescadores contornam facilmente. Realmente, ao mar se exige certa embriagues e o percurso a ser seguido até a Ilhabela é marcado pelo excesso de cautela e a paciência de nativo. “As coisas que não são do mar, tornam-se dele e as coisas que são dele, nele ficam”, mas a tripulação nem pensa em concluir o ditado, quer chegar lá e voltar cá. Os garrafões são amarrados por uma corda de nylon e submergidos a fim de deixar os líquidos frescos. O velho rema com cuidado para poder desviar das tarrafas em cerco e dos parcéis protegidos nas costeiras, uma outra grande pedra está visível, porém distante, muito lá, sem perigo cá. Quando lá longe, o velho liga o motor do barco quebrando o silêncio e prenunciando o labor. Cada um, velho e menino, se envolve ao próprio silêncio, calando o barulho constante do motor. O velho com o copo de vinho na mão, vinho que toma somente quando está no mar, acha respeitoso, quando está no mar, tomar apenas o sangue de Jesus, pois em terra o velho Nico não beberica vinho, prefere a cachaça e o menino mistura o doce ao cambuci, uma química esquisita que Samuca saboreia gulosamente rumando no calmo e preguiçoso mar, como se ainda dormisse, como se o mar dormisse. A lua inicia partida proporcionando reflexos plúmbeos no horizonte, favorecendo, a leste, um arrebol envolvido de frescor. Pacientemente o velho move o remo nas águas calmas, feito uma máquina em inércia, e contorna o barco rumo ao seu destino e em seguida quebra o próprio silêncio numa canção com formato de reza.

“Rema, rema, remando o barco vai
No mar, no mar que é mãe e que é pai
Bom dia, bom dia, aos amigos do mar
Me guia, me guia, pra onde Deus levar”

Ambos cantam aquela canção de remador inventada pelo velho, depois tiram as camisas, não temem as mutucas. O barco a singrar se afasta do vilarejo. Samuel aguarda a presença do senhor Sol em um silêncio de crânio, para que assim possa imprimir atos rotineiros do labor; um o misto de respeito e apreensão, a silente oração para adentrar o oceano, depois forma uma colcha com mão direita e a leva nas águas, quer lavar o rosto, se refrescar, se deitar na proa; de sua camisa fez um travesseiro e cochila respirando o oxigênio trazido pela maresia, esquece o barulho contínuo do motor, ou se acostuma com ele, enquanto o velho aproveita a calmaria para arrumar as bananas e os cambucis para melhor navegar a embarcação. Pouco em pouco o vilarejo se transforma em um ponto, até sumir apagado pelas costeiras rumo à próxima praia. Nesse entretempo o velho se recosta nas pencas de bananas, descansa os pés enrugados e em casco, prepara um cigarro do fumo de rolo que corta e guarda no saco de pano, envolve o fumo na palha, o amarra, traga as primeiras pitadas sonoras e se acomoda ao balançar do barco, ministra tragos de vinho, tabaco e indo, se deixa levar até quando o barco pedir labor. Na bancada de sentar e dormir, o baú de guardar arpão, caso um bom atum o convide à luta, as cordas, pois elas favorecem a existência do homem do mar, as redes para caso houver surpresa de cardumes pelo caminho, bugigangas e um grande terço com a imagem de alguma Nossa Senhora, por precaução a santa dos deuses do mar, mas com predileção a Iemanjá. Outra etapa e o velho segura firme o terço para rezar alguns segundos, depois lança o terço entre as bugigangas, pita profundamente o seu tabaco e olha com o fôlego preso o céu perdendo o seu último escuro para dar lugar ao dia.
Na orla do horizonte, no leste imagens do silêncio: um plúmbeo feito resquício de labareda e o azul quase dia, fazem-se alternar as cores mistas entre calor que vem e tímido frio que vai, céu e inferno, Deus e Diabo, dragões dissipados pelos azuis gélidos e devorados pela noite ida, anjos vindouros nas poucas nuvens brancas que mancham o azul tímido. No horizonte, quantos horizontes no meio círculo completo, no leste, no oeste, no sul ainda há uma escassa escuridão fantasmagórica anunciando um precipício, ali no fundo do horizonte marítimo, imagens de fazer pensar que se podia cair naquele grande buraco negro ou sem cor, mas que fica ali, logo depois do fim do mar, urgentemente é necessário iniciar o dia para banir da ilusão aquele grande penhasco, justamente agora que o vinho do velho começa a produzir os seus primeiros efeitos: ‘Senhor Deus, não deixais cair lá, deis a nós um belo dia!’, e o norte, e o oeste, neles a mata semiverde, alguns pontos com suas cores verdadeiras, o sol chegou lá para mover os seres da mata, quantos horizontes no meio círculo completo, quantos... E o menino Samuel dorme o sono tranqüilo de imensidão, recuperando o que fora perdido por ter se despertado na madrugada, talvez sonhe com as coisas do mar, são as coisas que ele conhece, talvez sonhe apenas com as coisas que conhece, são as coisas da sua vida, e sorri durante o sono, não sabe criar fantasmas feito o velho, sua inocência não o permite, sorri um sono satisfatório.

Mar mutável, mar definido com seus líquidos e leis próprias, mar caos onde tememos os movimentos estranhos, e tememos saber o que são; mar mundo novo, mar nos arremetendo ao esquecimento, mar de imagens nunca antes vistas brincando com a nossa imaginação; mar infinito, eterno, morada dos monstros e dos deuses; mar finito, terno guardando os segredos da vida eterna; mar real, mar além do real, mar irreal, navegar à busca, à procura, à volta, navegar, navegar marinheiros, pescadores artesanais; mar por detrás da mata, se unindo na morada dos seres que vão ao mar, que temem o mar, mar céu, do ilhéu, mar dos santos propícios, dos tresloucados milagres e das bênçãos: mar de São Samuel que santo jamais foi, de Santa Maria Mãe de Deus, de Iemanjá, dos seres que surgem na praia, do menino dormindo um sono feliz ao som do motor do barco; ex-voto na capela lá no vilarejo para agradecer as viagens e a vida: “Olhai pelos homens que vão negociar bananas e cambucis e trazer cachaça boa e um pouco de dinheiro para as despesas. Olhai!”, mar da mata. – Vós me desse a benção para navegar tuas águas e a Vós eu agradeço, Senhor!

Não é mais tão manhã. Viajando à língua do mar o brilho do cardume de camarões, que pena!, que coisa!, barco cheio, sem espaço e os bichinhos passeando quase à deriva, seguindo sabe-se lá que estranho caminho natural e a rede ali esperando trabalho, a vontade de lançá-la ao mar, o tempo calmo, o vôo das gaivotas e dos guarapirás que querem saciar a fome da noite dormida no desjejum rotineiro, o menino Samuel que ainda não adquiriu o dom de ver cardumes e pensar em fartura, tanto faz para ele, tanto faz, preferindo, às vezes, que eles, os peixes, fiquem ali, guardados no mar.

O velho Nico desliga o motor do barco a fim de fazê-lo esfriar e aproveita para brincar com as aves famintas. Ele e o menino as manjubas.
O movimento da canoa, quase inerte naquele sem fim de mar, era proporcionado pelo resquício de vento sem rumo. Ondinhas de lá e cá batem sonolentamente na madeira deixando a impressão de abandono e transformando em coisa do oceano a canoa no mar. Um nome numa língua antiga batizava a embarcação que se relaciona com a morbidez do tempo oceânico: Ex Voto Maria. Nome extenso, em grandes letras garrafais, ocupa-se da polpa à proa, de ambos os lados, o objeto a navegar aparentemente abandonado ao sol radiante, ao céu de extenso azul e apenas uma nuvem no horizonte invertido de onde se via ofuscado o verde do vale da mata. Nuvem pequena traz chuva grande, mas aquela tá lá, indo lenta prá lá, então não vem chuva. O verde do vale da mata que era o farol dos pescadores: “Sê vê de longe. Em tempo bom tu se guia no vale!” era aquele ponto verde o indicador dos lugares, das praias que deviam ir, ancoradouros dos barcos que voltam, dos lugares onde habitam os homens do mar; quando o tempo está bom, até de noite vê-se o vale verde, mas, à noite o verde se transforma em negro e, lamparinas acesas por lampiões de querosene ou por geradores de bateria, indicam o pisca-pisca, o lusco-fusco aos que se embebedam de cachaça extraída da banana, porque quando a noite é boa os homens estendem o tempo, faz com que ele, o tempo, vá conforme a preguiça dos homens do mar.

De um lado da canoa o pé direito de Samuel com dedos quase colados, embora largos, feitos pés de pato, alguns dizem que um dia os pés de Samuel se transformarão em patas nadadeiras ou em um par de rabos de peixe, outros não entendem como o menino consegue ir para o sem fim de mar e dormir debaixo de um sol a pino. Quando acorda é para dar um mergulho profundo a fim de exercitar o fôlego, coloca a sua máscara de proteger os olhos e se deixa à paisagem marítima. Volta, nada até a catraia, se segura num dos lados e se regurgita para dentro dela a fim de continuar no sono, muda o pé, agora o esquerdo e cochila do lado inverso para poder se confundir com o horizonte do mar quando se junta ao horizonte do céu. Horizontes por todos os lados ao balanço perpétuo e sempre desigual daquele tronco trabalhado se divertindo no infinito.

Hora de novo mergulho. A água não está turva dessa vez, tudo que se olha vê, mas se vê tudo do barco, dentro da água límpida se vê ainda mais e melhor. Então Samuel pula, um salto de cabeça no mar e uma pequena bolha soçobra, mergulho perfeito dessa vez, e leva consigo um restinho de manjubinhas. Samuel vai brincar de apinéia, ver coisas coloridas de lá do fundo, que são tudo vidas, brincar de apinéia, dormir dentro do mar e roncar bolhas enquanto Seu Nico cochila dentro da catraia, do ‘voto Maria’, como chama. Desce até aonde o corpo suporta a pressão, se estica e se deita de pé, com o braço direito erguido e totalmente paralisado, assim pode ficar mais tempo naquela cena, a apinéia é uma preguiça trabalhosa. E vê, brinca sua brincadeira predileta, brinca de vê, com a mão direita estendida a segurar as manjubinhas. Quando lhe vem fazer companhia um agulhão, que satisfeito está Samuel, justo um agulhão de vela de barco e parece sem escamas, dos que brilham, o bico bilha prata e a vela nas costas dele é colorida de azuis, justo o agulhão que Samuel sempre gosta: se parece com um peixe comum, de meio braço e meio, mas é um agulhão bandeira, um pouquinho mais velho que um filhote e Samuel gasta um naco do tempo de sua apinéia com um movimento que faz o peixe amedrontado abrir a sua vela e partir em volúpia a procura dos rochedos. Como cada minuto em apinéia lhe significa uma temporada, logo outro companheiro lhe aparece e desta vez sem medo, como se já se conhecessem, a guaivira branca e vem mansa, solitária e abocanha uma manjubinha, que parece não ser o seu prato predileto, Samuel sabia de longe que era ela, ou outra ela, mas sabia tratar-se de uma guaivira, pois o rabo amarelo brilhava um ouro e o corpo brilhava prata na água límpida e dançava acanhada aos olhos de Samuel feliz, mas que previra ter passado o tempo todo necessário para suportar a falta de ar atmosférico, enquanto a guaivira come, os pés largos de Samuel se movimentam lentamente e ambos sobem, a guaivira comendo e Samuel indo ao encontro do ar, parecendo que o peixe conduzia o menino pela mão erguida, quando ambos se separam, guaivira para baixo, Samuel para cima e ‘voto Maria’ com Seu Nico dormindo a quase setenta pés dali. Algo em torno de algumas horas se passou naqueles quase quatro minutos.
Fim do dia chega com o barco Ex Voto de Maria atracando no píer, se protegendo de correntes e intempéries na abra do Bonete, dali sai amanhã, bem cedo. Então o pequeno cais para descarregar os produtos, daqui a pouco, depois, primeiro aportar ileso na Praia do Bonete com os tripulantes, Seu Nico que sai ao encontro de Januário das Cachaças, papear primeiro, e depois os negócios, e Samuel, quieto menino, fica com as mercadorias, não para olhá-las ou ser guardião delas, é que Samuel precisa de tempo para se adaptar às coisas que lhe chegam e Seu Nico sabe disso: ‘Depois tu vem cá, Samuca, pros capiau vê como tu crescesse!”. Januário das Cachaças é o comerciante daquela praia, nela somente se chega pelo mar.

Januário das Cachaças, também conhecido também como cafuzo, é homem de estatura média, rosto portentoso e largo de homem muito alto, mas era de estatura média, tataraneto de João de Abreu, como fala a todos, mas nada tinha de branco, a não ser aquela falácia sobre o tataravô, sangue mesmo tinha de índio tupi-guarani com nego fugido, ou trocado naquele mesmo maembipe, nome dado ao local neutro para as farras, para as trocas de mercadorias, para resgates de prisioneiros, antes mesmo de ser o Bonete era o Maembipe. Enquanto aqueles escambos se davam naquele lugar neutro, alguma índia fugidia e algum negro lançado ali, seja por navios mercantes, ou pelos corsários que usavam a ilha com o fim de descarrego, sabe-se lá, mas algum negro ali fora deixado para gerar a prole de Januário, o cafuzo, aparentava mais de cinquenta anos, mas tinha menos de quarenta, um câncer de pele lhe comeu a idade, apesar de que certidões de nascimentos eram anotações em caderninhos, cabelos negros e grossos judiados pelo sol, nariz achatado e um leve bigode sujando o rosto, altivo em seus negócios e o único que ainda produzia cachaça, visto que a ilha não mais o faz, como dantes era em abundância. E foi a cachaça de Januário o principal motivo daquela empreitada, e um cadinho de dinheiro, sim, como anotava Seu Nico no caderninho, todas as bananas dão esse tanto, tanto bom esse tanto e os cambucis dão outro tanto menor, não tão bom, então ‘trocasse os cambucis pela cachaça, pelo fumo e um cadinzim de diesel pro barco voltar’ e fica tudo igual. Era vantagem para Januário que comercializava bem as bananas na ilha sem frutas, também os cambucis que edulcoravam as cachaças e voltavam em garrafões de cinco litros a um preço nada modesto, exceto para Seu Nico, amigo irmão, que se “for querer, dou pra tu, sem cobrar um nadinha de nada”.
Samuel até que ficou forte. Passeia pelo píer carregando uma penca de bananas a cada viagem de quase cinquenta metros do barco até o armazém do pequeno caís, e assim vai até terminar o carregamento no desembarcadouro. A visita de Samuel é um motivo de festa para os parcos habitantes daquela praia, o menino que surgiu do mar, o filho do mar. ‘Samuel menino de Deus, vem provar o doce de abóbra que Janaína te fez, vem filho do mar’.

PARTE II
Iaciara.
Flutua pelas águas placentais do ventre da morena índia, como que se comunicando, mandando recado através do organismo ao feto, essa linha de acesso do cordão umbilical, tac, tac, chuu, essa onomatopéia de linguagem própria, uma intercomunicação íntima, o feto, como que perdido no lugar quente daquele mar fechado, do mar, mar, é de lá que tudo vem, do mar fechado do ventre, da água em gosma, quentinha, cobertor líquido, conduzido pelas mãos pequenas que acariciam o ventre, pequenas mãos, pequenas, da índia Iaciara, calmas mãos, e a voz da canção que invade o corpo e cobre o ventre acalantando o feto, calmas mãos, dedos curtos de menina, leves como a alma, menina sentada na rede, presa de um lado a outro do cômodo casa de cômodo só, casual, acaricia, pequenas mãos de menina, calejadas pelo fabrico de farinha de mandioca, pela limpeza das tainhas, pelo preparo do pirão, mãos calejadas acariciando, mãe morena e pequena, acariciando, lá dos lados de Boracéia, bebia as águas do Ribeirão Silveira a menina mansa, feito a onça que alimentada dormia no galho grosso da árvore frondosa, mansa e de olhos negros como os cabelos, simbiose da ausência das cores, índia, Iaciara, mãe quem deu o nome, lá pros lado de Boracéia, corte de franja, mansa a acalantar o ventre onde nana o ente que lhe furta o colostro enviado através do cordão com o gosto daqueles seios tesos e morenos, morena mãe menina e pequeninha, dezesseis anos, acham que é, mulher que é, ventre rechonchudo, sentada na rede a balançar de cá e lá, e no lá a penumbra da árvore jambolão, e no cá a sobra do chapéu de sol, balançante, os olhos de quando em quando cerram ao cochilo quando lhe vem à imagem o rosto dormindo da criança no ventre, se filho será Samuel, se filha será Nina, menina de dezesseis, Iaciara, um metro e sessenta de mulher cantando, tateando....
“Çaciara, çaciara iande
Eçaí curumim eté
Carió, eté carió
Aracê, abaré baquara
Carió, eté carió
Orube, orube, orube, orube...”

Para casar a casa tem de estar feita, mas ainda não estava a casa, naquele dia do casório o que estava feito era uma réplica de terno, um vestido de noiva, e o bote a motor para levar o casal no cartório, a palavra do cacique dando a mão da noiva, mas que não aceitava o ritual católico, então teve que ser civil, noiva prenhe, cacique nem se importa, tem que casar, só casar, “católico índio não gosto e índio não tem boa história com católico”, os pais do noivo e o cacique da tribo, Iaciara era órfã, mesmo assim era o cacique quem a representava, só o cacique e ninguém mais da tribo no bote a singrar para o cartório, ou algo parecido a cartório, um senhor que escreve e tem um livro do governo, lá nas Maresias, ele põe tudo, lá ele é história, Iaciara e Naudemar, não agüentaram os calçados emprestados do vilarejo, lá ele põe que tiraram os calçados, no lugar de igreja uma festa para alegrar o povoado, mas só depois de nascer a criança, Samuel se for homem e Nina se for menina, escolha da mãe, nome continental, escolha de Iaciara...

A casa tem que ser feita para casar, mas Naudemar e Iaciara casaram e a casa está sendo feita. Quatro cinco metros, um de cada lado, foram marcados no chão, a meio metro do chão, para evitar barbeiros e suas chagas, no lugar ali, propositalmente protegido pelo jambolão, e pelo chapéu de sol, e pela jaqueira, esta última mais lá, porque jaca quebra telhas, e nesse lugar aqui, protegido dos ventos quentes do noroeste e os arrasadores do sul. Quatro cinco metros demarcados a fio de nylon no chão formando o quadrado pisoteado com um rolo de tonel cheio de barro seco. No primeiro buraco cavado para o primeiro entrelaçamento de madeira e ferro, para o cantão e a primeira viga vertical meticulosamente pensada e erguida nos primeiros centímetros e assim continuou laboriosamente o homem calmo pelos quatro lados. As vigas erguidas ele engenhosamente entrelaçou bambu por bambu e os amarrou com os cipós formando a gaiola do cômodo só para depois fechar com barro bom, aquele argiloso buscado do morro da cachoeira e vem juntando a meses esses aterros para que, enfim, fosse fechado naquelas paredes do lar. Seu Nico foi quem madeirou os quatro cantos da construção para, finalmente, cobrir com as telhas de barro, feitas ali sob o sol do tempo passado e depois o acabamento em mutirão feito pelas mãos das mulheres do vilarejo, “Iaciara pode não, olhasse! Tá prenha demais.” E a casa para casar os já casados estava pronta, necessitando apenas caiar.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Coração Leviano (Carmem, o quê...) Romance

Como foi e, talvez, ainda é meu rom tem o direito a matar sua romi, mas Carmen sempre será livre.


Dedicado
Às canções de Paulinho da Viola; à Maria Renata; à criação de Carmen, de Marimèe; à ópe-ra Carmen, de Bizet; às putas da Boca do Lixo; ao malandro sem nome; e, sobretudo, aos meus filhos Pedro Henrique, João Gabriel e Guilherme.


Seis horas da manhã, ele chega, enfim, naquilo que se chamam de terraço do cortiço, silenciado, concordando com o desfecho. Sim, chega! O ato foi o de chegar, mas nada sabe, está inerte, não tem mais que se preocupar com nada, apenas chega e fim. Mas nem sabe se chega ou se parte para um novo e misterioso destino. O seu corpo lhe furta a percepção e a sua emoção ignora o tempo e o espaço. Ainda não é totalmente dia, no horizonte precipita um abóbora, o horizonte. Um horizonte nulo. As coisas, o tato para as coisas não percebe aquele homem moreno e a sua espessa corrente de ouro dezoito caindo pela palma da mão esquerda. Tudo nulo nele; as duas correntes no tórax: a grossa, a fina, ouro dezoito, o horizonte. Basta erguer o crânio para saber que acima de sua crise habita o horizonte, uma chama fria, hori-zonte neutro que acorda para um sono bom, um novo dia abóbora, ou laranja. O esplendor no dourado da visão que, de quando em vez, reflete-se no adorno do ouro no corpo posto e a cor do corpo irmana-se à tez morena da manhã. O Malandro taciturno carrega a sua cuíca na ponta dos dedos canhotos, camisa desazo enquanto a destra maquinalmente viaja o cigar-ro pelos lábios grossos.







Vinte e oito anos, ou um pouco mais. Ele tem o dia vinte e dois de outubro para resol-ver uma questão de honra com Tomé, no centro velho, nalguma hora da noite, sim! Honra. Duas e quinze da madrugada. Alguns companheiros testemunham ou soldam à espera de or-dens para comprovar se a questão seria resolvida, no mano a mano. “Sem ordens, a coisa é minha, sangue bom!” Tomé temeu, mandou recado através de Perna Fina para marcar o duelo em outro espaço: ‘Te manda, Perna Fina!’ Tomé tentou, ‘Mas talvez não houvesse as diferen-ças! Talvez um papo na Praça da Luz, um ambiente ermo, no mano a mano.’ Malandro está na Praça da Sé. O encontro fora transferido para a Estação da Luz, na frente da praça. Mas foi, queria ir, foi, puto pelo caminho, Malandro foi com os seus. Atravessou atônito e resolvido a rua que serve como ponte para os trilhos do trem e parou; observou a praça mal iluminada que guarda em algum canto o seu inimigo Tomé: tudo ermo: ‘Não tem importância, talvez alguma cilada, não tem importância.’ Malandro odeia uma única vez.

Foi assim, sabe, falta de respeito, sabe quando o sujeito passa dos limites? Quando os amigos dançavam na gafieira do Bixiga, na bela noite de vinte e um, Dagmar, morena vistosa, corpulenta, ancas de vitrines, lábios de negra, canelas finas, gingado na cintura e acompanha-va Malandro pelo salão. Tomé, bêbado, decidiu que Dagmar devia acompanhá-lo ao chorinho, ele era o tal contrabandista e então ela deveria ser dele e a flauta suava, a cuíca chorava, luz difusa própria para a arte da dança. Tomé insistia, mas era dispensado pela morena e ignorado por Malandro, relutava, queria a morena, ‘uma cabrocha a dançar’, e não era Tomé quem a trouxera, então, o salseiro estava armado. Tomé disparou a mão na anca da mulher, segurou-a pelo braço e jorrou maldades de todas as espécies sobre o seu parceiro: Malandro? ‘Quem é esse bosta, não tem nem nome!’ Dagmar se conteve. Era regra, ‘mulher não’, se conter e não seria ela quem resolveria a questão, ela não, ‘mulher não’, se acantonou calada. Malandro a-certou um murro em Tomé que, de imediato, ganhou o chão ao tentar revide: ‘Não aqui, san-gue ruim. Deixa pra lá.’ Tomé prometeu vingança de morte, em algum lugar, fora dali, na Pra-ça da Sé, Estação da Luz, em algum lugar, noutra hora, sim, ‘esse Malandro sem nome bateu em Tomé, no Rei, sabe o que é, mermão?’, ambos de acordo, aquela noite estava muito boa para terminar em merda. ‘Não merda, não!’. Noite dos notívagos, dos dançantes, dos cara que querem as mulheres, das mulheres que querem os caras, merda não. Sem entreveros. Nenhu-ma questão pode ficar assim, sem ser resolvida: um duelo, sim, idéia, muito ódio, questão de-ve ser resolvida: ‘Calma Malandro!’ A Sé ou o centro velho, na próxima madrugada, para que todos saibam. ‘Ok, mermão’.

Tomé, conhecido no centro e da noite, contrabandista, alimenta a Galeria Pajé, tem gangues, dinheiro, armas, tem poder entre os marginais e dentes de ouro na boca. Estaria des-moralizado caso faltasse ao encontro, duelo, sagrado, de morte, o murro na cara em pleno sa-lão. ‘Não, isso não! Quase tirou meu dente de aurium da boca!’ Ou era tudo papo furado, ou uma guerra de nervos, ou nada, ou o Malandro pode ser um bunda e será fácil desbancá-lo. ‘Seria bom para os meus negócios.’ Mas Malandro tem ódio e quer resolver tudo na mesma hora, na saída do salão: ‘Meu igual, ele bolinou a minha nega! Como há maldade no coração do homem!’ Malandro resolveu por aceitar o encontro. No fim de festa não consegue mais jogar o pé direito à frente para dar o passo da sua gafieira. ‘Tá vendo, gente minha, tá vendo!’.

Na rua da praça, em frente à estação, o Malandro. No meio, entre um lado e outro da rua da praça, em frente à portaria fechada da estação, Tomé, sorrindo para lucilar os seus den-tes de ouro. Atrás de Tomé, uns dez metros, sua gente, seis homens carrancudos. Em seguida, atrás de Malandro, um bando de doze ou treze homens fortemente armados, aquietados ao silêncio do patrono irado. Só os dois, como combinado. Tomé menciona temor. O sorriso de outrora pela possível vantagem fora engolido a seco; nele o presságio congela os ossos.
As lâmpadas que jorram raios amarelados não eram suficientes para iluminar a praça, visto que tantas delas necessitam de reparos naquele dia vinte e dois de outubro. Pouco mais de vinte e oito anos de Malandro que caminha, por ser outubro, com a boca espumando de ódio até o encontro daquele inimigo mortal: silêncio absoluto. As árvores estão negras, respei-tam a sordidez da madrugada; bancos sujos, a praça suja, respeitam a greve dos garis. Os mendigos dormem, talvez pelo cansaço não se apercebem do que se passa.

Lá, no apartamento conjugado à Rua Vitória, Dagmar, apreensiva, toma calmantes, an-siosa por notícias daquele encontro. Uísque mais calmante, e mais, mais, faz com que a amiga que divide apartamento a leve ao primeiro pronto socorro. Calma, cama, desintoxicação. ‘Dagmar treme tanto, o que será?’ Internamento por esta noite, glicose, soro e alguns lenitivos e repousar para esquecer.

O salão da gafieira fechou porque vinte e dois de outubro, segunda feira, é dia de des-cansar os funcionários que, como Dagmar, estão ávidos pelo resultado do entrevero. ‘Aquele Tom Mé é mesmo forgado. Merece um resultado’.

Próximo de Tomé, Malandro saca uma automática, 765, leva-a em direção dos olhos para mira. Tomé se afasta por ter descoberto que Malandro não está ali para brincar. Tomé que sempre se julgou o tal treme. Os amigos de Tomé se debandam enquanto ele labuta por um mal entendido: ´Com conversa questões se resolvem, gente nossa! Se resolvem, resolvem’ Tomé leva a mão na cintura, nada mais impede o que há de acontecer. Malandro dispara o primeiro tiro em direção do estômago de Tomé que leva a mão esquerda no local ofendido e com a direita insiste em se armar, quando Malandro dispara pela segunda vez, pois sabe que, se o primeiro tiro atinge a parte baixa do corpo, o segundo, conseqüentemente, atinge a supe-rior e foi o que aconteceu quando Tomé se estatela morto com o segundo tiro na cabeça.

Ninguém nada viu. Não há nenhuma testemunha. Por precaução, Malandro necessitou resolver uma parada, um trabalho no Paraguai. Quem sabe dos seus negócios? Falou-se em abrir as portas de uma jogatina em trinta dias, quando voltasse. ‘Um dia ele volta, sangue bom’.

Calça de linho branca e engomada, cortada à mão, serviços de bom alfaiate. Cinto de couro preto engraxado e lustrado, e cintila, e brilha, importado. Camisa vermelha, algum tipo de seda produzida pelos escravos de China. “De volta o novo e bom Malandro, e aí!” Corrente grossa de ouro dezoito se perdendo nos pêlos do tórax torneado. Chapéu de feltro preto, ócu-los ray ban, quase um espelho, em plena madrugada do dia vinte e três de novembro quando ele, era mais de vinte oito anos, estacionou na porta do salão de gafieira para responder aos “e ai’s?”. Ele palita os dentes. Ele tem esse hábito, é freqüente e vai, e corresponde a todos que o interpelam.

- Falô, meu irmão! E aí, doçura do papai! Comé que vão os negócios, meu irmão? Vou levar Vosmece para conhecer a praia, te entende?

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Enletrar

Não ponha palavras em minha boca
Ponha boca em minha boca, e as palavras?
Para que servem as palavras?

Faça das letras balas e mate belos
Ou flores, encante cães
Volte.

Crie letras em seu jardim
Invente uma inteligênica - e um saco de risos
Para mudar - ou seja: fazer mudas.

Dessas mudas, leia-se mudar, mude-se
Com as palavras que se reinventam, mesmo as existentes
Invente a própria palavra - mude-se pelo creme
Pelo crime, pelo sabor... pelo saber.

(continuarei depois).